«À descoberta da cultura calon pela mão dos chaborrilhos»

Antes de mais, convém situar-vos no tempo quanto às experiências e vivências que vou partilhar aqui.
Trata-se de uma aventura humana que se iniciou em Setembro de 1992 e que abriu um parêntese em Setembro de 2007, quando regressei ao jardim-de-infância “tradicional”. Trata-se de um período que cobre 15 anos da minha vida de educadora, entre os meus 33 e 48 anos, que considero terem sido os mais ricos da minha vida profissional.
Desde então, a minha relação com a cultura calon (ou cigana) tem sido através dos amigos e amigas calons que angariei ao longo daquele período e que vou alimentando, actualmente, através das novas tecnologia (redes sociais, emails, telemóvel, etc..).
Foi no âmbito destas aprendizagens que escrevi a dissertação de mestrado, designada “Aprendendo com Ciganos: Processos de Ecoformação” publicada em 2003, e, dez anos mais tarde, a tese de doutoramento “Aprender a ser cigano hoje: puxando e empurrando fronteiras” (a qual aguardo defender brevemente).
Quando me refiro ao jardim-de-infância “tradicional”, faço-o porque, efectivamente, as experiências e vivências que contribuíram para estas descobertas situaram-se nas margens do sistema educativo, num trabalho sem rede e com paredes de vidro, à margem mas não marginal, pois era conhecido de mais variadas instituições públicas e privadas, com quem interagia. Digo, sem rede e com paredes de vidro porque situado no âmbito de uma intervenção socioeducativa não formal e informal no Centro de Animação Infantil e Comunitária da Bela Vista em Setúbal, assim como na animação de rua, de feiras e de mercados no âmbito do Projecto Nómada, desenvolvido pelo ICE-Instituto das Comunidades Educativas, entre 1995 e 2007, na Península de Setúbal, Alentejo e Algarve.
Por outro lado, as aprendizagens que ecoaram em mim já estão filtradas pelo tempo, pelo espaço, pela reflexão, pela saudade e por muita emoção, diria mesmo comoção. Neste preciso momento, o que senti ao trabalhar com os chaborrilhos foi uma experiência única que designei de improvisação educativa” em 2003. No entanto, actualmente, defino-a como “Duende Pedagógico”, à semelhança do que sentem os bailaores, cantaores e tocaores de flamenco, tão bem descrito por Frederico Garcia Lorca (1933) no seu texto “Jogo e Teoria do Duende”.
Para mim, o “Duende Pedagógico”, é uma sensação inebriante de estar em sintonia com os outros e com o meio envolvente, em que podemos ser autores de nós próprios, em que a nossa acção educativa brota pelos poros como se uma inspiração nos tivesse possuído naqueles momentos. Ah! E como busco hoje essa inspiração, em vão, no jardim-de-infância tradicional. Continua a ser uma busca, continua a ser uma procura, pois ainda não a consegui atingir…
O que aprendi e vivenciei com as crianças ciganas – as chaborrilhas[1] (versus lacorrilhas) – e suas famílias moldou, indelevelmente, a minha forma de pensar a educação – e porque não dizer também a vida - e a minha prática educativa, sobretudo quando realizada em espaços não formais e informais. Mas receio que me tenha “toldado” o pensamento e “inibido” a acção quando realizada em espaços institucionais e formais, dando-me a sensação de estar em permanente desajuste e dessintonia.
O desajuste deve-se, na minha modesta opinião, a vários factores interligados entre si e que tentarei, desajeitadamente, descrever-vos, mas que se podem resumir em algumas noções básicas, como sejam: o tempo, o espaço, as mensagens, as emoções e as urgências que são, efectivamente, percepcionadas e vividas de modos diferentes.
Costumo utilizar a noção de policronia para explicar o facto de, na cultura calon, tudo estar ligado a tudo e realizar-se quase que em simultâneo, tendo um impacto imediato na construção de laços entre as pessoas e as coisas. Esta noção também a utilizei para dar forma à noção de ecoformação que defini como sendo a formação indelével que os outros e os espaços públicos exercem sobre nós de modo informal, ou seja, a importância do poder transformador da educação informal no nosso processo de aprendizagem ao longo da vida.
Trata-se, efectivamente, de expectativas e de sentidos diferentes atribuídos à função educativa e à aprendizagem.
Na cultura calon, todos educam, todos são modelos, todos aprendem e todos ensinam. Na cultura calon, os mais velhos têm prerrogativas que nós já perdemos e os mais novos participam no quotidiano da vida dos mais velhos, sendo iniciados, por impregnação, às regras de convívio e às actividades comunitárias sem grandes discursos prescritivos.
Na cultura calon, a pessoa do chaborrilho é reconhecida e respeitada, porque é-se membro de um grupo sendo-se, simultaneamente, uma pessoa única, com as suas especificidades, sejam as dificuldades e sejam as potencialidades.
Na cultura calon, os elogios são constantes e as repreensões escassas e, apenas em último recurso, proferidas pelos mais velhos, pois é entre os pares que as regras são percepcionadas e os comportamentos ajustados.
Na cultura calon, as potencialidades são enaltecidas e as dificuldades são alvo de tratamento especial, pois são os mais velhos que devem ajudar e apoiar os mais novos para que estes as ultrapassem.
Na cultura calon, aprende-se fazendo e são os nossos actos que nos educam, ou seja, são os resultados dos nossos actos que são avaliados e não tanto as intenções, havendo sempre lugar à compensação, à reparação e/ou à retribuição para corrigir os insucessos, as falhas ou prejuízos.
Na cultura calon, elogia-se o grupo pelo sucesso de cada um e omite-se as suas dificuldades, pois significaria que foi o grupo que não soube exercer o seu poder modelador e educativo.
Na cultura calon, mais do que as palavras de circunstância é significativa a presença, ainda que silenciosa, nos momentos importantes da vida, para partilhar sofrimentos e alegrias. Cala mais fundo um gesto, um olhar, um murmúrio ou um sussurro do que as palavras bonitas e caras.
Na cultura calon, é-se avaliado pela sabedoria demonstrada na gestão dos conflitos (noção de justiça muito apurada), pela capacidade de tolerar as insistências dos chaborrilhos, pela coragem de enfrentar, de peito aberto, um desrespeito, demonstrando valentia e bravura, sem calcular os prejuízos pessoais e solidarizando-se com os mais fracos e injustiçados.
Na cultura calon, a arte é valorizada, quer seja a musical (cantar, tocar ou bailar), quer seja a da palavra eloquente; seja a competência em levar por diante os sonhos e desejos, ou ainda a persistência e determinação, desde que enalteçam o grupo e não o prejudiquem.
Na cultura calon, a criatividade, o improviso e o desembaraço são avaliados como competências a trabalhar. Com algum treino ainda que informalmente realizado - mas sempre em grupo, pela via comunitária, esta competência revela a capacidade de adaptação constante, ou seja, de inteligência prática.
Muito mais se poderia e deveria dizer a propósito dos detalhes e nuances de como manter acesa a luz nos olhos e nos corações dos chaborrilhos e dos calons.
Mas digam lá, se estas não são práticas, noções e conceitos que também se aprendem nas escolas de formação inicial dos profissionais de educação? Por isso, não vos trouxe nada de novo, eu sei. Apenas quis dizer-vos que “ainda sou do tempo em que…” o afecto e as pessoas eram (e continuam a ser) importantes e que a minha vida de educadora, apesar de prosseguir em espaços formais e sem trabalhar, presentemente, com os chaborrilhos, “já não é a mesma coisa…”
Estas crianças e suas famílias ainda guardam o que nós já esquecemos e, presentemente, gostaríamos de recuperar. Então, saibamos escutar e ler nas entrelinhas o que estas pessoas têm para nos ensinar: aprender com o outro e com as situações, ao longo da vida, e aprender a apreciar os sentimentos e emoções que nos une e dão sentido à aventura de ser-se humano…
Texto escrito no âmbito da Comemoração 23º Aniversário da Convenção dos Direitos da Criança, Seminário Internacional: Cidadania, Infância(s) e Território, Universidade de Aveiro, 22 e 23 de novembro 2012


[1] Criança cigana traquina. Termo utilizado para repreender uma criança cigana (chaval).

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