Crónicas & Corona - Pandemia 1

Crónicas & Coronas nº1 – 29 abril 2020
A 13 de março 2020, fomos informados que teríamos de encerrar o Jardim de Infância. Avisámos as famílias que já o tinham feito dias anteriores. Fizemos um post no blog do Jardim de Infância a informar dos procedimentos a realizar daqui em diante. Estávamos esperançados que voltaríamos a seguir à interrupção letiva da Páscoa… E estávamo-nos preparando para um mês de pausa letiva presencial e que manteríamos os contactos telefónicos e via internet.
O que faz uma educadora de infância em educação à distância – E@D?
Como transforma, canaliza e redireciona os afetos e os desafios significativos para os seus "Duendes” à distância? Incontornavelmente, deverá passar pelas famílias, encarregados de educação, que os filtrarão…. Tinha de ser, simultaneamente, assertiva, mas não intrusiva; incitadora mas não stressante; respeitadora dos espaço e tempos familiares mas não ausente; esperançosa mas não irrealista; etc… Ou seja, manter o equilíbrio, serenando… angústias, medos, revoltas, zangas, desgostos, desânimos, entusiasmos, etc…
Numa primeira fase, foi-nos pedido que mantivéssemos as rotinas da sala e do JI, infiltrando-nos nas dinâmicas das famílias… Imediatamente, lembrei-me de textos que tinha escrito e compilado em tempos (Educação de Infância e Intervenção Comunitária, 1997, Cadernos ICE º4) e da importância estratégica de confiarmos na capacidade das famílias se reorganizarem e encontrarem, no seu seio, os recursos necessários e pertinentes… De se reinventarem em torno das crianças e das suas responsabilidades… De serem competentes na sua função educativa… E senti-me renitente em invadir o espaço familiar com propostas que costumava fazer em sala, sobretudo se baseadas na “pedagogia de situação”, tentando agarrar o que vai acontecendo na dinâmica socializante dos meus "Duendes”.
No meu blog, tinha por hábito, dar contas às famílias, de forma regular (quase diariamente), o que vai acontecendo na nossa sala. Não o podendo fazer da mesma forma, decidi, semanalmente, organizar propostas e desafios em torno de um tema (tentando respeitar o que tínhamos planeado para o ano letivo no PAA do agrupamento), para que as famílias mantivessem o hábito de consultar o blogue, conversando com os seus filhos sobre o que se ia fazendo ou, neste caso, planeando a semana de vida em conjunto, conciliando a vida familiar com o teletrabalho, as aulas de E@D dos outros filhos, em diferentes anos de escolaridade.
Numa segunda fase, foi-nos pedido para contactar com todas as famílias com regularidade, sobretudo com as que não davam “sinal de vida”, para “não deixar ninguém para trás”… Então, para além de contactos telefónicos com as famílias, acionei reuniões do grupo através de uma plataforma de videoconferência, semanalmente. O intuito era, sobretudo, para que os meus "Duendes” continuassem a sentir-se como parte de um grupo, de "matarem saudades" uns dos outros, visualizando-se… Uns sentiram “vergonha” e retiraram-se, acanhados... Outros queriam tanto estar com os amigos que choraram por não os poder abraçar… Paralelamente, criei um grupo da sala dos “Duendes” no WhatsApp, pedindo para quem quisesse sair se sentir à vontade para o fazer, mantendo os outros canais de comunicação em aberto (email, blog, SMS, telefonemas). Com mais este canal aberto, a comunicação fluía e as trocas intensificaram-se. Recebia, diariamente, feedback das famílias, através dos trabalhos, desafios e conquistas que iam fazendo com os filhos, que publicava nos dois blogues que geria (da sala dos meus Duendes e do Jardim de Infância).
Paralelamente, cuidava da minha mãe, de 91 anos… Para a proteger, dispensei (temporariamente) os apoios domiciliários que tinha e que cuidavam dela enquanto me encontrava a trabalhar no direto… Mantinha uma rotina diária idêntica àquela que tinha antes do "isolamento profilático"… A minha mãe estava mais tranquila, pois estava com ela 24 horas por dia, mantendo as suas rotinas. E eu, embora inquieta e desassossegada quanto ao futuro,  tinha encontrado uma rotina que me dava equilíbrio. Duas vezes por semana, tinha “aulas de Pilates" por videoconferência; uma vez por semana, ia às compras, devidamente equipada com máscara, seguindo-se todo o ritual de higienização necessária dos produtos comprados e a mim própria; uma vez por semana, contactava com os meus netos via videoconferência e, regularmente, com o meu marido, cuidador do meu sogro com 92 anos. Aparentemente, no meio deste "tsunami", tinha encontrado uma certa tranquilidade, aos 61 anos de idade e 40 anos de serviço… Mas tenho saudades, muitas saudades de tudo…Do antes do Corona…Do sol, da brisa do mar, do cheiro a maresia, dos aromas das mimosas e eucaliptos, dos abraços, dos beijos e das brincadeiras com os netinhos. 
Há sempre um MAS… Se penso no futuro, fico angustiada… 
Quanto ao futuro da educação de infância sob a pandemia Covid19 que pode, facilmente, tornar-se pandemónio, num hipotético retorno ao jardim de infância com novas rotinas assustadoras (máscaras, viseiras, luvas, obsessão pela higienização “de tudo e mais um par de botas”, afastamento físico, sem abraços, colos, beijos e carinhos…). O medo iria substituir o riso e a brincadeira? O prazer de ser educadora ficaria refém das normas e regras de higienização? O sentimento de incompetência e de impotência iriam substituir o de realização profissional e pessoal?


*****

Crónicas & Corona nº2 - 27 junho 2020 
Face ao desafio que me foi lançado «o que consideras importante que fique registado sobre ser Educadora@Distância incluindo dificuldades, conquistas…», a quente, “despejei”: “Hei de escrever, com tempo, sobre esta experiência. Preciso de distanciamento para "me ver passar à janela"... Ainda estou no olho do furacão... Preciso de digerir... Mas, ainda assim, numa primeira impressão, parece-me ter conseguido ultrapassar este primeiro choque... Contudo, preciso de refletir mais um pouco, depois de indagar junto das famílias, sobre este processo...
Cá estou a tentar responder, ainda em quente, talvez já a morno, pois julgo que só no próximo ano letivo, com a permanência de 50% do grupo é que poderei avaliar o impacto desta experiência nas crianças e nas famílias. Porque, no momento, trata-se apenas de uma avaliação reativa… 
Enfrentar as dificuldades tem sido sempre a minha primeira abordagem em tudo na vida. Avaliar os recursos disponíveis para poder construir uma resposta adequada e ajustada à realidade a transformar, equacionando vários cenários a mobilizar. Foi assim no Centro de Animação Infantil e Comunitária da Bela Vista (Setúbal) em 1992-1995, dando origem ao Projeto de Alfabetização Informal e Comunitário em 1993-1995 e ao Projeto Nómada em 1995-2004…
Ser educadora é ser tecelã de redes de afeto, entre pessoas, com os saberes e com o conhecimento. Afetos que se constroem, paulatinamente, ao ritmo dos interesses que vão surgindo e que vamos sendo capazes de desvelar, entre sinais e adivinhações… Com imensa intuição, perscrutando nos olhares, nos gestos, nos silêncios, nas zangas, nas oposições, nas insinuações, nas alegrias e gargalhadas….Dando tempo ao tempo…Sem empurrões…Mas com alguns tropeções… 
É bem verdade que esta nova modalidade de ser educadora à distância apareceu alicerçada nos afetos e cumplicidades construídos ao longo do 1º semestre… Por isso, tinha a vantagem de já estarem tecidas as redes de afeto entre os meus "Duendes" e suas famílias, e no seio da equipa do jardim de infância… 
Como já tínhamos o hábito de utilizar o blogue tanto do grupo como o do jardim de infância para comunicar com as crianças e as famílias, este instrumento de divulgação foi, naturalmente, rentabilizado e reforçado. A par deste utensílio (blogues), iniciei-me noutros dois: construir um grupo WhatsApp e realizar reuniões com plataforma Zoom para nos tornarmos mais presente. 
No grupo WhatsApp, a comunicação foi diária e permanente, enquanto que na videoconferência foi semanal. Como tinha muitos “duendes” pequeninos (16 de 25 crianças de 4 aninhos), a videoconferência tornou-se um pouco constrangedora (dando lugar a acanhamentos, choros, frustrações) que alguns superavam através de mensagens gravadas em áudio ou vídeo que partilhavam no grupo WhatsApp. 
Para os mais velhinhos (5/6 anos) e dependendo da disponibilidade das famílias assoberbadas em teletrabalho e acompanhamento do #Estudoemcasa# dos outros filhos, a comunicação semanal teve alguns aspetos positivos: aprender a esperar pela sua vez para falar, levantando o dedo para que a palavra lhe fosse dada, de modo a, efetivamente, poderem também escutarem-se uns aos outros e haver espaço para verdadeira partilha e escuta... 
A par destas ferramentas, também foram enviadas semanalmente, via email, algumas propostas de trabalhos, sobretudo para os mais velhinhos que iam para o 1º ano. Os desafios proporcionados tentavam colmatar o trabalho que fazíamos já em sala, com os “cadernos” construídos com eles e nos quais sistematizávamos as aprendizagens realizadas em situações induzidas e/ou desafiadas. 
A grande vantagem desta situação de E@D foi que todo o processo passava, incontornavelmente, pela disponibilidade e implicação das famílias… E toda a programação/planificação sugerida, assentava na estreita colaboração e cooperação da equipa educativa do jardim de infância que saiu reforçada.
O grande desafio foi, efetivamente, manter e fortalecer a rede de afetos já tecida sem invadir a privacidade de cada família e, simultaneamente, estar na retaguarda para qualquer situação de pedido de ajuda...Nalguns casos, construíram-se novas cumplicidades, noutros casos, provavelmente, as malhas da rede ficaram mais lassas em vez de estreitar os laços… 
Porque, naturalmente, ser educadora é ser afeto com a linguagem corporal: os colos, os abraços, as brincadeiras, os risos, as gargalhadas, as zangas, as danças, os absurdos, os miminhos, os beijos de fada, os improvisos, etc…Faltou tudo isso…Porque acredito no “duende pedagógico” que surge da “pedagogia de situação”.
Em termos logísticos, tive de aumentar a internet cá de casa (aumentando os custos para o dobro), para poder corresponder a tantos desafios e reuniões à distância…Em contrapartida, pude acompanhar a minha mãe de 91 anos, 24 horas por dia, facto que lhe e me deu qualidade de vida e tranquilidade emocional. 
Resumindo, nem tudo foi mau! Mas… Há sempre um MAS…
Para poder continuar a proteger a minha mãe, tive de pedir licença sem vencimento por 30 dias no mês de junho, durante os 17 dias letivos remanescentes. Nesse período, continuei a alimentar os blogues (do grupo e do JI)  e a enviar, semanalmente, os desafios para as famílias desenvolverem com os filhos em casa, porque apenas 7 "Duendes" voltaram para as “aulas presenciais”. 
E o maior MAS foi não haver lugar para despedidas… As já tradicionais despedidas (despedidas 1 & despedidas 2) que costumamos fazer. Com direito a tudo o que uma despedida implica e traz de surpreendente…Desde a festa, a dança, o canto, até ao riso, as lágrimas, os abraços comovidos, as cumplicidades descobertas…A tal trama que fortalece a tecedura/rede de afetos que constroem a nossa infância e dá sentido à profissão de educadora de infância. 
Será que em setembro, teremos tempo para reconstruir cumplicidades com os 12 "Duendes" que permanecem comigo na sala e com os outros novos "Duendes" (13) que irão encher a sala (25 crianças numa sala), sabendo que existe um tal de Covid19 que nos obriga a cumprir com as recomendações da DGS: distanciamento físico, obsessão pela higienização e proteção com máscaras para os adultos? 
Ser educadora, com 61 anos de idade e 40 anos de profissão, a 4 anos da aposentação, nessas circunstâncias, é que não sei se serei capaz!!!??? Viver, permanentemente, com a cara tapada, escondendo a expressão não verbal de que toda a comunicação é feita na infância...É tremendamente frustrante...
Boas férias e um até breve…



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